O suplente


A dica de hoje é o filme argentino "O suplente" dirigido por Diego Lerman e estrelado por Juan Minujín. O tema não é novo e traz a história de um escritor que para sobreviver vai dar aulas num colégio público que fica no bairro onde ele nasceu. Poderia ser mais um daqueles clichês de professor querendo arrumar a vida de seus estudantes algo deslocados do mundo por conta da tragédia da pobreza, mas, ainda que apresente algumas obviedades, o filme acaba fugindo disso.

Apesar de Lucio – o professor  - se deparar com a indiferença e o desencanto dos alunos e tentar fazer o possível para motiva-los a se interessar por literatura, o centro do filme é, na verdade a dura decisão que Lúcio tem de tomar: assumir ou não o lugar do pai na luta por um mundo melhor. No bairro o pai de Lucio é um conhecido lutador social que batalha contra a prefeitura e os traficantes, oferecendo comida de graça para os sem-nada. E, na volta do filho para o bairro, lidando com os mesmos dramas na escola, ele o interpela. 

O filme já nos pega pela estética diferenciada, totalmente diversa da dos filmes estadunidenses. Uma Argentina conhecida e próxima, também calejada por seus problemas sociais, nos salta à cara. Bairros de lata, gente drogada, traficantes, impossibilidades, juventude sem direção, ruas de cimento, casas gradeadas e escuras. Na trama, Lucio acaba se envolvendo nos problemas de um aluno, que também circula no restaurante do pai. É aí que as vidas do pai, filho e pupilo se juntam.

Por fim, na batalha por ajudar o garoto a fugir do tráfico, Lucio perde o pai e se vê inapelavelmente diante da decisão que evitava tomar: seguir ignorando a luta que se desenvolve sob seus olhos ou mergulhar, como o pai, na difícil batalha da luta social. O final não tem surpresa, mas deixa a gente com aquele sorriso bobo nos lábios, principalmente gente como nós, que seguimos aí na luta para mudar esse mundo ruim. Vale ver. Tem no Netflix.

O trem de Lenin


A dica de hoje é o filme "O trem de Lênin", de 1988, roteirizado e dirigido pelo italiano Damiano Damiani, e que passou na televisão no ano de 1990 como uma série. Ele tem mais de duas horas de duração e é dividido em duas partes. Conta como foi que transcorreu a viagem de Lênin, desde a Suíça, onde estava exilado, para a Rússia, no ano de 1917.

Naquele ano a Rússia fervia. O czar Nicolau II já abdicara por conta dos protestos populares iniciados pelos operários de São Petersburgo, e que depois incendiaram o país inteiro na chamada revolução de fevereiro. Mas, em vez de um comando de trabalhadores forma-se um governo provisório juntando representantes da nobreza, da burguesia, e socialistas moderados. A revolução, portanto, ainda não se cumpria, estava nas portas, e Lênin, o líder dos bolcheviques, estava fora do país, na Suíça. A primeira guerra mundial comia solta na Europa com os alemães querendo assumir o controle do mundo. Nesse cenário, um aventureiro de nome Parvus consegue convencer os alemães que se Lênin voltasse à Rússia, poderia tirar os russos da guerra, garantindo assim uma vitória para a Alemanha.

A proposta chega a Lênin. Ele seria escoltado da Suíça até a Suécia, passando em segurança pelo território alemão, e da Suécia seguiria para São Petersburgo, de onde poderia liderar a revolução. Era um risco, pois receber ajuda dos alemães poderia torná-lo um traidor. Por outro lado ele queria estar na Rússia. Então ele decide aceitar, mas não iria sozinho. E assim ele foi chamando outros russos exilados para formarem um comboio. Não deixou para trás nem seus adversários mencheviques. Estes, temendo uma cilada, não aceitam. Ainda assim, Lênin reuniu 32 passageiros para a viagem.

O filme mostra toda a capacidade política de Lenin manejando as armadilhas, escapando dos tentáculos dos inimigos, e amarrando os fios da revolução que viria sob o comando dos bolcheviques. Com ele, vão camaradas, a esposa e a amante. Um caldeirão fervoroso que Lenin consegue dirigir com maestria ainda que em alguns momentos tenha de decepcionar alguns companheiros.

O revolucionário russo é interpretado por Ben Kingsley, que todos lembramos como o Gandhi. Pois ele faz uma bela caracterização de Lênin, contido e expressivo.

O trem de Lênin é um belo filme e recupera, sem apologia, esse momento decisivo para o povo russo. A hora em que Vladimir Ilyich Ulianov, Lenin, ou Volodya para os mais íntimos, decide enfrentar todos os riscos e chegar a São Petersburgo. A final é ao mesmo tempo simples e apoteótico. Vale ver e vivenciar a humanidade desse ícone da revolução russa.

O filme está livre no Youtube


Hiroshima, meu amor


A dica de hoje é um clássico do cinema francês, filmado em 1959, sob a direção de Alain Resnais. A trama conta a história de um encontro fortuito entre uma atriz francesa e um arquiteto japonês, na cidade de Hiroshima, que foi devastada pela Bomba Atômica estadunidense no final da segunda grande guerra. A cidade e sua tentativa de superação da tragédia aparece também como um personagem e é a partir dela que o casal vai se envolvendo.

Os dois amantes passam juntos uma noite e o homem se enamora, seguindo-a pela cidade no dia seguinte, permanecendo ao seu lado até a hora da partida. Enquanto o tempo passa a atriz conta do seu primeiro amor, um jovem alemão que conheceu quando sua cidade, Nevers, foi ocupada pelos nazistas. E, a partir daí relembra todo o drama que viveu ao ser descoberta e humilhada pelos vizinhos, sendo tosada e escondida numa adega, só libertada quando o jovem alemão morreu.

O filme mistura a tragédia pessoal da mulher com a realidade brutal da guerra. É bonito, triste e intimista. Ele também representa um marco no cinema, pois foi a primeira vez que se usou o recurso do flaskback  (cenas do passado), hoje bastante comuns. Em preto e branco, com uma narrativa arrastada, mas de nenhuma maneira cansativa, é considerado uma dos filmes mais belos de todos os tempos. Eu recomendo.


O sol do meio-dia


O filme de Eliane Caffé, produzido em 2010, é de uma belezura sem fim. Primeiro que ele é todo rodado no estado do Pará, mostrando partes de um Brasil que muito poucas vezes se vê na tela grande. Depois, porque mostra um bailado extraordinário de atuação, com dois grandes atores brasileiros: Luis Carlos Vasconcellos e Chico Diaz. É definitivamente muito bom de se ver. São gigantes.

A história nada de tem de original, mas nos pega justamente por traduzir o Brasil real, interiorano, nortista. Dois homens na luta cotidiana pela vida e o amor pela mesma mulher. Um deles (Vasconcellos) é um sujeito atormentado que acabou de sair da cadeia depois de ter cometido um crime. E o outro (Diaz) um malandro brasileiro típico que vive fazendo malabarismo para se manter vivo numa realidade de miséria e de opressão. Juntos eles embarcam rio acima numa jornada que vai enveredando para a tragédia.

Nos caminhos dessa vida marginal, eles encontram Ciara em busca da filha. Cada um a seu modo, se apaixona. Artur, fugindo, por não se sentir digno e Matuím, direto e certeiro, querendo simplesmente um amor. No andar da história impossível não se apaixonar por esse macunaímico desastrado interpretado magistralmente por Chico Diaz e a gente vai até o fim torcendo por ele. É um sobrevivente que nos desperta a mais profunda ternura.

Mas, o coração de Ciara bate por Artur, até que venha o desenlace. O filme tem alguns vazios de narrativa, mas nos carrega. O final parece abrupto, é cru e sem doçura. Mas, não poderia ser diferente, considerando a vida pesada dos trabalhadores desses cantões do Brasil.

De qualquer forma é um filme para se ver. Uma ou mais vezes. Encantando-se com Matuím, esse valente, que mesmo na mais pura agonia encontra força e graça para seguir em frente, saltitando como um Pererê. 

O filme está livre no Youtube.

A dama de Baco


A Dama de Baco, ou The Baccus Lady, é um filme sul-coreano de 2016, dirigido por E J Yong. Narra o triste fim de uma prostituta velha, que oferece seus serviços nos parques de Seul. Um retrato cru da realidade das pessoas idosas, pobres e sozinhas que precisam enfrentar o peso da existência além da decrepitude. Infectada com uma doença venérea por conta da profissão So-Young encontra um garoto perdido na rua, deixado para trás depois de sua mãe esfaquear o pai. Ela o leva para sua casa onde também orbitam um homem mutilado e uma mulher trans, cada um com seus dramas. E os três se revezam na atenção, oferecendo mais do que podem.

Em meio aos cuidados com o garotinho So-Young segue com a vida de encontros fortuitos e acaba encontrando um antigo cliente que sofreu um derrame e que lhe pede para ajudar a acabar com a vida de sofrimento. A partir daí o filme vai revelando a triste existência dos velhos sul-coreanos perdidos na solidão e na pobreza. Apesar de ser considerada a décima primeira economia do mundo a Coreia do Sul registra a mais alta taxa de miséria entre pessoas idosas. Um drama recorrente na periferia capitalista onde o velho é considerado um inútil.

Num dos momentos do filme um documentarista que pede para entrevistar a prostituta pergunta a ela sobre o porquê de estar se prostituindo e ela diz: “foda-se a verdade. As pessoas não estão nem aí para isso”. O retrato mais acabado da realidade atual de um mundo no qual o estado se desobriga das pessoas restando a elas a solidariedade dos mais próximo que vivem tantas misérias quanto.

O filme é duro e triste, retratando uma Coreia para além dos doramas açucarados. Vale ver para compreender a extensão da miséria do capitalismo. Disponível no streaming Mubi. 


Reservation dogs


A dica de hoje é a série Reservation Dogs, ou Cães da Reserva, em português. Trata-se de uma produção dirigida, escrita e estrelada por indígenas, ambientada no estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, onde vive o povo Cree. Ela está rotulada como comédia, mas tem seus momentos de profunda tristeza e reflexão. A produção é do neozelandês, Taika Waititi, que tem descendência Maori e a direção fica a cargo de Streling Harjo, dos povos originários dos Estados Unidos. 

A série gira em torno de um pequeno grupo de jovens que vive numa terra indígena, e que busca cotidianamente os meios para sair de lá, e fugir em direção da Califórnia, considerada a terra das oportunidades. Eles passam os dias entre a escola, o ócio e a invenção de pequenos e grandes furtos que praticam para juntar dinheiro. A cada episódio vai se descortinando a realidade das famílias que vivem nos espaços reservados aos indígenas, os dramas, os mitos, as histórias fantásticas, a solidariedade, o humor, as estratégias de sobrevivência, a relação com os não-indígenas num país tão marcado pelo racismo. 

Os jovens confinados nas terras indígenas sentem a vida escorrer pelas mãos, sem oportunidades, por isso o sonho de escapar. Mas, na medida em que vão se envolvendo com outros personagens mais velhos e, mergulhando na realidade de sua história e sua cultura, acabam percebendo que ali está uma realidade que precisa ser protegida e que a luta coletiva é o caminho. Os atores são de primeira qualidade e os roteiros intensos e emocionantes. É a primeira vez que a chamada “indústria cultural” abre espaço para uma produção assim uma vez que os indígenas sempre são retratados ou como vítimas de um passado que ficou para trás, ou como figurantes de uma história que parece não lhes pertencer. 

Na série Cães da Reserva eles aparecem como protagonistas de suas vidas, com todas as dores e belezas de ser quem são. Vale a pena conferir.

Pode ser vista, gratuitamente, no sítio seuseriado.com 


O gato amarelo


A dica de hoje é o filme cazaquistanês, “O gato amarelo”, produzido em 2020 e dirigido por Adilkhan Yerzhanov. Conta a história de um jovem que sai da cadeia disposto a mudar de vida, montando um cinema nas montanhas do Casaquistão, onde vive. Já no primeiro dia depois da liberdade ele tenta encontrar um emprego, mas é impedido por um policial, que é seu irmão e também parte de uma banda criminosa. A intenção é fazer com que ele volte a vida de crimes servindo a um bandido local, destino natural da gente daquele lugar. Sem saída ele vai e nessas andanças acaba conhecendo uma garota, que vive numa casa de prostituição. Ele ganha uma noite com ela e passa o tempo falando do seu sonho de montar o cinema, apaixonado que é pelo filme O samurai, com Alan Delon, que viu inúmeras vezes na prisão.

Os dias passam na calorenta e vazia estepe até que Kermek se vê diante da ordem de matar uma família inteira. Ele não cumpre e foge com o dinheiro, disposto a fazer acontecer o seu sonho. Mas, naquelas aldeias perdidas do Casaquistão, parece não haver possibilidade de fuga. Ainda assim, ele vai em busca da jovem prostituta e a leva junto para a aventura de construir o cinema. É uma relação mesclada com a dureza da realidade e a ternura que os dois conseguem ter apesar de tudo. As cenas são lindas e os diálogos cheios de pureza.

Mas, a cada passo que eles dão, a gangue que os persegue também chega, fazendo com que novamente tenham de fugir. Por fim, sem saída, Kermek tenta mudar seu destino conversando com o bandido local. “Porque temos de viver como cães? Por que não mudamos isso? “. Uma indagação que fica no silêncio.

O final é triste e impactante. Expressa toda a dureza de uma cultura e a brutalidade de um cotidiano que parece imutável. Retrata a triste lenda do gato amarelo, prática usada no Casaquistão para incendiar terrenos que depois serão tomados pela grilagem. Uma realidade tão distante e ao mesmo tempo tão próxima, pois assim como é lá no leste Europeu também pode ser numa favela em El Salvador ou num morro do Rio de Janeiro. 

O trabalho é lindo. A história é dura. Mas ainda assim, eivado de humanidade. O filme pode ser visto na plataforma Mubi.