Filmistaan - a vida em imanência



Essa é uma obra do cinema indiano que paradoxalmente se encontra na etiqueta de comédia, embora seja um filme sensível, provocador e triste. Conta parte da história de Sunny, um jovem da periferia de Mumbai que sonha o que milhares de jovens indianos sonham: ser ator de cinema no circuito bollywood.

Ele consegue um emprego de assistente numa produção de um grupo de documentaristas estadunidenses no remoto Rajastão, que tem fronteira com a Índia e o Paquistão. Desgarrado do grupo em uma estrada deserta ele acaba sendo sequestrado por um grupo jihadista muçulmano do Paquistão. Sunny é levado para uma pequena comunidade e lá os líderes do grupo descobrem que sequestraram uma pessoa inútil, que não teria qualquer possibilidade de barganha. O projeto original era sequestrar os americanos. Eles então deixam Sunny e voltam para tentar pegar os documentaristas dos Estados Unidos.

É aí que se desenrola a história. Sunny acaba conhecendo um outro jovem da comunidade local, Aftaab,tão apaixonado por cinema quanto ele e os dois tramam uma aventura louca para tentar provocar a fuga de Sunny. E essa loucura é produzir um filme na aldeia, com a câmera que havia sido trazida junto com o indiano.

Nessa aventura os jovens se defrontam com os dramas de viverem em países que estão em permanente conflito, como é o caso da India e o Paquistão, e ao mesmo tempo, por mais incrível que possa parecer toda a comunidade começa a gostar de Sunny e espera vê-lo livre. Mas, os guardas que são deixados na vila já sabem que Sunny vai morrer e é só questão de tempo.

O filme vai se desenrolando entre cenas engraçadas, líricas, lúdicas e de profunda ternura, com o crescimento do carinho entre os dois amigos e com a comunidade, também de certa forma refém dos fundamentalistas.

O plano maluco de Aftaab acaba sendo descoberto e então os dois são sentenciados. Vão morrer. Depois de muita negociação por parte comunidade os sequestradores aceitam levar Sunny e Aftaab até a fronteira para deixa-lo partir. Mas, era uma mentira. Eles serão mortos no caminho.
Um fato inusitado acontece o desenlace final é de uma beleza abissal. A vida nos confins de um mundo desconhecido, a profunda pobreza, os ódios políticos e raciais, tudo isso como pano de fundo para um improvável amizade.

Filmistaan é mais um maravilhoso retrato da vida e da aventura humana.


Almacenados


Passo aqui para recomendar o espetacular filme de produção mexicana, Almacenados. Baseado na obra do dramaturgo espanhol David Desolá, que também assina o roteiro, o filme é de uma beleza infinita, que faz rir e faz chorar, despertando os sentimentos mais tristes e ternos, ao mesmo tempo.

Almacenados, que traduzindo do espanhol seria algo assim como estar armazenado, estocado, reproduz a última semana de um trabalhador no seu emprego, em um depósito de carga, sendo que nesses cinco dias ele terá de repassar todas as instruções ao novato que chega. O senhor Lino esteve ali por 39 anos e agora está se aposentando por conta de um problema de saúde. Assumindo o cargo está um jovem, Nin, que chega disposto a aprender e trabalhar, mas se depara com a frieza e a sistematicidade do velho.

Não esperem tiros, ação ou turbulência. Almacenados é um filme lento, denso, profundo. A narrativa caminha devagar, no ritmo do velho trabalhador. Toda a trama se passa dentro de um armazém, com pouquíssimas cenas externas, e tem apenas dois personagens. Abordando questões como a velhice, a doença, as dificuldades do encontro geracional e os eternos problemas do trabalho, o filme do jovem diretor mexicano Jack Zagha Kababie é puro assombro. É incrível como tanto o roteirista quanto o diretor conseguem carregar a gente na loucura da rotina do trabalho do armazém, fazendo com que se produza uma compreensão profunda sobre o que é ser trabalhador, o que é ser amigo, o que é ser solidário e o que é, fundamentalmente, ter consciência de classe.

Tanto o garoto Hoze Meléndez, que faz o jovem aprendiz, como o experiente ator mexicano José Carlos Ruiz estão magníficos, numa atuação avassaladora, cheia de silêncios e olhares repletos de perplexidade.

Nesses tempos duros, de tantas tristezas e derrotas, ver um filme como esse provoca tanta alegria, tanta esperança, tanto beleza que, ao final, depois de verter litros de lágrimas, a gente só consegue pensar que a vida vale a pena, tem sentido e é bonita demais. Desde que saibamos que é amor ao outro, ao nosso companheiro, a nossa única possibilidade de salvação.

Recomendo poderosamente. Estamos?

Dobhi Ghat


Triste e delicado retrato da vida em Mumbai traz o  filme indiano Dhobi Ghat (também conhecido como Diário de Mumbai ).

A índia é um país que tem grande produção cinematográfica, inclusive seu núcleo de cinema é conhecido como bollyhood - em alusão a roliúde -  e boa parte dos seus filmes são musicais alegres e fantasiosos. Mas, também são produzidos outros filmes de uma beleza sem par. No geral são sempre muito tristes, porque a vida na Índia é muito dura. O país ainda reconhece e mantém as castas o que faz com que as pessoas vivam em universos paralelos. Quem é de uma casta jamais pode pensar em sair dela. Os pobres, a maioria absoluta na Índia, vivem dramas cotidianos que quase não cabem na alma da gente.

Dobhi Ghat mostra essa dureza da vida e abissal distância que pode existir entre as pessoas. Dirigido por Kiran Rao estreou em 2010 no Festival de Cinema de Toronto. A história passeia pela vida de quatro pessoas, de mundos distintos que, de alguma forma se encontram. Arum, um artista solitário e rico que pinta a vida pulsante de Mumbai. Shai, uma indiana que vive nos Estados Unidos e vem passar um tempo em Mumbai para se dedicar ao seu hobby que é fotografar.  Munna, um lavador de roupas que vive nas piores condições e sonha em ser artista de cinema. E Yasmin Noor, uma jovem recém-casada, que conduz toda a narrativa em três cartas filmadas ao irmão.

Essas quatro vidas se entrelaçam para mostrar a realidade das gentes na grande Mumbai. A pobreza infinita, a riqueza que se apropria da dor para produzir dinheiro, o inelutável destino de quem nasceu numa casta dita inferior, o terrível cotidiano das mulheres comuns comparado ao de uma indiana que vive no estrangeiro. Enfim, é um retrato muito bem equilibrado das vidas que se movem na gigantesca cidade indiana.

A amizade, o amor, a indiferença de classe, a capacidade de transcender, tudo isso vai se descortinando em meio às favelas e aos trabalhadores, principalmente os colegas de Munna que batalham nas famosas lavanderias a céu aberto de Mumbai, onde mais de sete mil pessoas ganham a vida limpando a sujeira dos ricos.

Por conta da realidade do país, filmes indianos que apontam para o cotidiano das pessoas comuns, trabalhadoras, nunca são bonitos. São duros e tensos. Sempre provocam um gosto amargo na boca. Mas, ainda assim, pode-se capturar momentos de profunda ternura e entrega humana.

Dobhi Gat é assim. Intenso, belo, triste, e absurdamente humano. Vale ver.